Numa rua de subúrbio, uma criança estava sentada à porta
de casa, olhando um livro ilustrado. Bem perto, havia uma escola e ali passavam
muitas jovens que estavam se preparando para ser professoras.
Uma delas parou para ver a criança e disse:
— Que gracinha de menina!
— Me conta a história? – disse a garota.
— Não! Primeiro você tem de aprender a ler. Quer que eu te
ensine? – olhando o título, a jovem apontou: — a, o, e, u, i, o. Não, assim,
não. Melhor assim: — a, e, i, o, u.
A criança olhou desconsolada e pediu novamente para ouvir
a história.
A futura professora não desistiu:
— Veja, é fácil: “a” com “i” faz “ai”! Como você fala
quando sente uma dor. E “e” com “u” faz “eu”! E apontava para o próprio peito,
dizendo: — eu, ai! eu, ai!
A criança, um pouco assustada, desviou o olhar e abriu o
livro. A normalista aborreceu-se e foi para a aula de Métodos e Técnicas de
Alfabetização contar para a professora que tinha encontrado uma pobre criança
que era um caso típico de falta de prontidão para a leitura.
Logo depois passou outra jovem que se enterneceu com a
cena da menina com o livro nas mãos.
— O que é que você está lendo?
— Não sei ler. Me conta a história?
— Vou ensinar a você. Como é seu nome?
— Betinha.
— Não! isso é seu apelido. Como é seu nome?
A menina pensou um pouco e olhou desolada para o livro:
— Me conta a história.
— Só se você me disser seu nome.
— Elisabete Maria de Oliveira.
— Ah, bom. Então vamos ver...
Puxando um caderninho da bolsa, a moça escreveu Elisabete
e pediu à criança:
— Aqui está o seu nome: ELISABETE. Vamos ler apontando com
o dedinho.
Apontando as nove letras, a menina leu:
— E-li-sa-be-te- ma-ri-a- de- o-li-vei-ra.
A jovem ficou embatucada e anotou a resposta para ir
perguntar à professora de Psicogênese da Língua Escrita como interpretá-la.
— Tchau, querida! Outro dia eu te ensino, OK?
Não demorou muito, passou outra jovem de boa vontade e a
criança lhe pediu:
— Me conta a história?
— Que gracinha! Eu conto se você me responder umas
perguntas.
A criança olhou ressabiada.
— Você já sabe as letras do alfabeto? – disse a moça.
— Não.
— Você conhece as famílias silábicas?
— Quê?
— Deixa pra lá. Diga-me uma palavra que começa com “pa”.
Por exemplo, pato, papai, palácio.
— Rei, princesa.
— Quê?
— Palácio, rei, princesa.
A futura professora suspirou. Saiu dali muito triste,
achando que a menina era muito bonitinha, mas não tinha discriminação auditiva.
Daí a meia hora, passou um professor de Gramática, cansado
e meio calvo, andando devagar. A menina resolveu tentar a sorte.
— Me conta a história?
— Não é assim. Fale de novo: “conta-me a história”.
— Hum?
— Conta-me a história, eu disse – respondeu o gramático.
— Mas eu não sei ler.
— Não, não é você que deve contá-la. Aliás, minha pobre
criança, você não sabe nem falar.
A menina fechou o livro com força e fez uma careta de nojo
para o gramático. Ele respondeu:
— Atrevida! Analfabeta! Iletrada! Anômala! Anojosa!
Anacoluto! e retirou-se, muito satisfeito de possuir um vasto vocabulário para
qualificar a pirralha.
Passou um tempinho, veio pela calçada uma professora de Sociolingüística, com seu gravador a tiracolo, e a menina resolveu tentar a sorte:
Passou um tempinho, veio pela calçada uma professora de Sociolingüística, com seu gravador a tiracolo, e a menina resolveu tentar a sorte:
— Tia, me conta a história?
— Fala de novo, meu bem, disse a professora, e ligou o
gravador. A menina era um exemplo magnífico de falante das classes populares do
subúrbio do Rio, de modo que a pesquisadora não podia perder a oportunidade de
entrevistá-la.
— Que que é isso?, perguntou a criança.
— Um gravador. Vou gravar o que você falar. Vamos
conversar. Quantos anos você tem?
— Me conta a história.
— Depois eu conto. Converse um pouquinho comigo.
— Quero a história.
— Você me conta uma história. Eu gravo, depois passo tudo
para o papel, pego a sua história e aí...
Mas a professora não pôde concluir: a menina já estava
longe, pulando num pé só, fora do alcance da pesquisadora.
Logo na esquina, a menina encontrou o vendedor de cocadas
que fazia ponto perto da escola normal. Pouco movimento, tarde parada. O
vendedor olhou pra menina com o livro e perguntou:
— Já leu esse livro?
— Não, lê pra mim?, disse a menina, sem muita esperança de
ser atendida.
— Hum, deixa eu ver.
O rapaz abriu o livro. Foi lendo devagar, como era
possível, pois tinha aprendido a ler mal e há muito tempo:
— Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho. Um
dia, a mãe dela cha-cha-mou-a e disse...
A menina deu um suspiro de prazer e sentou no muro da
escola para ouvir a história. Lá dentro, alguém dava uma aula sobre Métodos de
Alfabetização.
Marlene
Carvalho, professora
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro