terça-feira, 20 de agosto de 2019

A BATALHA DOS MÉTODOS


Numa rua de subúrbio, uma criança estava sentada à porta de casa, olhando um livro ilustrado. Bem perto, havia uma escola e ali passavam muitas jovens que estavam se preparando para ser professoras.
Uma delas parou para ver a criança e disse:
— Que gracinha de menina!
— Me conta a história? – disse a garota.
— Não! Primeiro você tem de aprender a ler. Quer que eu te ensine? – olhando o título, a jovem apontou: — a, o, e, u, i, o. Não, assim, não. Melhor assim: — a, e, i, o, u.
A criança olhou desconsolada e pediu novamente para ouvir a história.
A futura professora não desistiu:
— Veja, é fácil: “a” com “i” faz “ai”! Como você fala quando sente uma dor. E “e” com “u” faz “eu”! E apontava para o próprio peito, dizendo: — eu, ai! eu, ai!
A criança, um pouco assustada, desviou o olhar e abriu o livro. A normalista aborreceu-se e foi para a aula de Métodos e Técnicas de Alfabetização contar para a professora que tinha encontrado uma pobre criança que era um caso típico de falta de prontidão para a leitura.
Logo depois passou outra jovem que se enterneceu com a cena da menina com o livro nas mãos.
— O que é que você está lendo?
— Não sei ler. Me conta a história?
— Vou ensinar a você. Como é seu nome?
— Betinha.
— Não! isso é seu apelido. Como é seu nome?
A menina pensou um pouco e olhou desolada para o livro:
— Me conta a história.
— Só se você me disser seu nome.
— Elisabete Maria de Oliveira.
— Ah, bom. Então vamos ver...
Puxando um caderninho da bolsa, a moça escreveu Elisabete e pediu à criança:
— Aqui está o seu nome: ELISABETE. Vamos ler apontando com o dedinho.
Apontando as nove letras, a menina leu:
— E-li-sa-be-te- ma-ri-a- de- o-li-vei-ra.
A jovem ficou embatucada e anotou a resposta para ir perguntar à professora de Psicogênese da Língua Escrita como interpretá-la.
— Tchau, querida! Outro dia eu te ensino, OK?
Não demorou muito, passou outra jovem de boa vontade e a criança lhe pediu:
— Me conta a história?
— Que gracinha! Eu conto se você me responder umas perguntas.
A criança olhou ressabiada.
— Você já sabe as letras do alfabeto? – disse a moça.
— Não.
— Você conhece as famílias silábicas?
— Quê?
— Deixa pra lá. Diga-me uma palavra que começa com “pa”. Por exemplo, pato, papai, palácio.
— Rei, princesa.
— Quê?
— Palácio, rei, princesa.
A futura professora suspirou. Saiu dali muito triste, achando que a menina era muito bonitinha, mas não tinha discriminação auditiva.
Daí a meia hora, passou um professor de Gramática, cansado e meio calvo, andando devagar. A menina resolveu tentar a sorte.
— Me conta a história?
— Não é assim. Fale de novo: “conta-me a história”.
— Hum?
— Conta-me a história, eu disse – respondeu o gramático.
— Mas eu não sei ler.
— Não, não é você que deve contá-la. Aliás, minha pobre criança, você não sabe nem falar.
A menina fechou o livro com força e fez uma careta de nojo para o gramático. Ele respondeu:
— Atrevida! Analfabeta! Iletrada! Anômala! Anojosa! Anacoluto! e retirou-se, muito satisfeito de possuir um vasto vocabulário para qualificar a pirralha.
Passou um tempinho, veio pela calçada uma professora de Sociolingüística, com seu gravador a tiracolo, e a menina resolveu tentar a sorte:
— Tia, me conta a história?
— Fala de novo, meu bem, disse a professora, e ligou o gravador. A menina era um exemplo magnífico de falante das classes populares do subúrbio do Rio, de modo que a pesquisadora não podia perder a oportunidade de entrevistá-la.
— Que que é isso?, perguntou a criança.
— Um gravador. Vou gravar o que você falar. Vamos conversar. Quantos anos você tem?
— Me conta a história.
— Depois eu conto. Converse um pouquinho comigo.
— Quero a história.
— Você me conta uma história. Eu gravo, depois passo tudo para o papel, pego a sua história e aí...
Mas a professora não pôde concluir: a menina já estava longe, pulando num pé só, fora do alcance da pesquisadora.
Logo na esquina, a menina encontrou o vendedor de cocadas que fazia ponto perto da escola normal. Pouco movimento, tarde parada. O vendedor olhou pra menina com o livro e perguntou:
— Já leu esse livro?
— Não, lê pra mim?, disse a menina, sem muita esperança de ser atendida.
— Hum, deixa eu ver.
O rapaz abriu o livro. Foi lendo devagar, como era possível, pois tinha aprendido a ler mal e há muito tempo:
— Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho. Um dia, a mãe dela cha-cha-mou-a e disse...
A menina deu um suspiro de prazer e sentou no muro da escola para ouvir a história. Lá dentro, alguém dava uma aula sobre Métodos de Alfabetização.
Marlene Carvalho, professora
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

RECADO DE UM DEFICIENTE VISUAL


Eu perdi   um pouco de minha visão aos quatro anos. Bastante visão  aos dezesseis e    praticamente tudo do pouco que me restava uns três anos  depois.
Vou ser muito franco e sincero. Tive momentos difíceis  na hora de estudar, na    hora de querer namorar, na hora de querer dançar em uma  festa.
Não é fácil se adaptar ao mundo quando não se  enxerga, mas é importante entender que poucas coisas realmente valiosas são  fáceis.
Rapidamente, percebi que tinha só duas opções. Eu  podia ficar fechado em casa, chorando, porque era uma vítima, ou podia sair e  viver a vida.
Foi fácil entender isso intelectualmente.  Emocionalmente, demorei um pouco para aceitar esta simples lógica.
Ficando em casa, eu estaria garantindo que nada do que eu  queria jamais seria  possível.
Eu queria trabalhar, ter responsabilidade, ser produtivo,  ser amado, casar,   ser independente. Nada disso me seria garantido se eu  não me arriscasse e não    fosse à luta.
Mas, se eu ficasse me sentindo uma vítima, era certo que  nunca teria nada do que queria. A decisão era fácil, embora a luta não  fosse.
Acredito que algo que sempre incomoda quando se está  enfrentando um desafio,   como a cegueira, é que acreditamos que tudo isso é  injusto. Por que eu? Por   que eu estou ficando cego?
Com certeza, outras pessoas se perguntam outras coisas como: por que eu tenho câncer? Por que não tenho dinheiro? Por que não sou o homem mais bonito ou popular?
O interessante, nisso tudo, é que sempre achamos que o nosso problema é o mais sério. Quando um jovem faz o maior drama, porque não tem a roupa da última moda ou um carro legal, temos vontade de rir.
Com certeza, não rimos de alguém mais maduro que está com uma doença séria. Mas pensamos, silenciosamente, pelo menos ele viveu uma  vida feliz. Ou, pelo menos ele enxergou a vida inteira e viu coisas lindas. E  eu?
O certo é que não damos valor a nada do que temos. Então, sempre parece que não temos nada. Só damos valor a coisas que perdemos, que antes nunca demos atenção.
 Quando estava fazendo mestrado em Washington, triste por algum motivo, nem sei se era porque, como cego, estava tendo dificuldades  ou se meu computador estava com problemas, escutei, através do rádio, as  notícias de um professor universitário na Califórnia que era tetraplégico.
Como não podia usar seus braços e pernas, ele precisava  pegar um lápis com sua boca e escrever no seu computador, apertando uma  tecla de cada vez.
Imagine: eu me sentindo a maior vítima. No entanto, eu  podia andar por todo o campus, sem ajuda de ninguém, podia escrever mais  rápido à máquina do que qualquer pessoa na minha sala.
Aquele professor me ajudou a valorizar muitas coisas que eu não estava dando importância. Perguntei-me: o que é justo? O que é injusto?
É justo eu ter pernas quando não às utilizo para ganhar medalhas nas olimpíadas? Ou não as uso para ajudar o próximo e nem sequer as valorizo?
É justo eu ter um cérebro e não utiliza-lo ao máximo?  É justo eu ter braços fortes e não usa-los para abraçar, demonstrar meu amor  a quem, todos os dias, me dá tanto?
É justo eu ter uma vida e não me lembrar de agradecer  aos meus pais por me terem permitido nascer?
Afinal, sabe-se de tantos que são mortos enquanto ainda são embriões ou fetos.
É justo eu ter uma esposa, um curso universitário, um coração que pulsa, rins que funcionam, pulmões fortes, mãos rijas, e não me  recordar de dizer ao meu Criador: obrigado, Deus, por me teres criado?
A carta que acabamos de ler é de um jovem brasileiro, que trabalha em nova Iorque há quatro anos.
Sua filosofia pessoal, com certeza, não alentará  somente aqueles que estão  enfrentando a cegueira física, mas também a todos  aqueles de nós, portadores da cegueira espiritual, que não nos permite enxergar as  bênçãos que recebemos diariamente.
Pensemos nisso e mudemos o foco das nossas vidas de lutas, dissabores e dificuldades para vidas de oportunidades, testes e aprendizado.

Carta de Fernando Botelho, endereçada a um jovem cego de nome Juliano, residente em Curitiba.

NÃO ESQUEÇA...

NÃO ESQUEÇA...